
A farsa pode ser tomada como uma forma artística de subverter o mundo da arte? Para responder a tal pergunta, além de refletir sobre a postagem anterior, leia sobre a exposição "Geijitsu Kakuu", realizada em 2006 pelo artista cearense
Yuri Firmeza, que criou o personagem fictício de um artista famoso japonês, tendo a atenção de toda imprensa cearense, como se verdade fosse. Para saber mais, pesquise na Internet, leia os textos disponíveis
aqui e o que transcrevo logo abaixo.
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Como um vírus, Yuri Firmeza infiltrou-se na mídia e expôs as fraquezas de uma imprensa que, com raras exceções, mostrou-se incapaz de fazer uma autocrítica vigorosa.
O sobrenome de Yuri não poderia ser mais apropriado. Sua mais recente obra de arte é uma iniciativa que divide opiniões, mas não pode não ser classificada de firme. Ele criou um artista japonês fictício, batizado de Souzousareta Geijutsuka ("artista inventado" em japonês, segundo ele) e a exposição de arte e tecnologia Geijitsu Kakuu ("Arte e ficção"), programada para ser inaugurada na última terça-feira, no Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MACCE) do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, pólo referencial das artes no Ceará.
Yuri também criou uma assessora de imprensa igualmente fictícia, batizada de Ana Monteja, que abasteceu a mídia local com press-releases sobre a exposição e o suposto artista japonês. Conseguiu até emplacar uma entrevista na capa do caderno de cultura do jornal de maior circulação no Estado, o Diário do Nordeste, só para usuários cadastrados. Tudo com o aval do Dragão do Mar, a "isca" que a imprensa precisava para ser fisgada pelo artista.
A surpresa veio com a revelação, no dia seguinte à publicação dos textos noticiosos divulgando a exposição fictícia, de que Souzousareta, apresentado como renomado artista contemporâneo internacional, com quatro passagens pelo Brasil e mostras em Tóquio, Nova York, Berlim e São Paulo, nunca existiu e não fora do projeto artístico de Yuri e das páginas dos jornais, pelo menos.
No MACCE, o projeto de Yuri, correspondente à quarta edição da série Artista Invasor, ganhou a sala supostamente destinada às obras de Souzousareta. Lá, estão expostos e-mails trocados entre o artista e o sociológico Tiago Themudo, com quem Yuri dialogou na concepção do projeto, e um texto de apresentação (em português e inglês) de Souzousareta ao público, escrito pelo diretor-técnico do MACCE, Ricardo Resende.
No debate Chá com Porradas, promovido pelo Centro Dragão do Mar na última quarta-feira, Yuri declarou: 'Os jornais de hoje (quarta-feira) confirmam o descaso, comprovam que não têm seriedade. Seduzi os jornais do mesmo modo que eles seduzem o público. A obra é uma situação".
A "situação" criada por Yuri busca refletir as complexas relações entre o status da arte contemporânea e seu posicionamento com outras instâncias, como os espaços de museus, galerias de arte e a cobertura midiática. "Queria discutir o museu como espaço de conservação simbólica e outras questões que não sejam propriamente estéticas. Aí entrou a questão da mídia, do mercado, das galerias. Uma invasão que não se limitou ao status museológico, mas a todo um sistema em que ele está inserido. E a mídia é o principal sistema", afirma. Outra preocupação do artista era revelar o descaso da cobertura da imprensa local com os artistas contemporâneos cearenses: "Falta um acompanhamento sistemático da produção contemporânea, de artistas que expõem em projetos importantes aqui e em outros Estados", enfatizou.
Questionado pelo Overmundo sobre os métodos empregados no seu processo de criação, duramente criticados pela imprensa, Yuri afirmou: "No meu caso, a invenção do artista é o próprio trabalho. O suporte era o jornal. Faltou humor da imprensa. Ela não teve iniciativa de se sentir como co-autora da obra. Os jornais se sentiram afrontados, viram que são vulneráveis a esse tipo de invasão. Não existiu uma auto-reflexão da imprensa."
Ainda no Chá com Porradas, o diretor do MACCE defendeu o artista: "A ousadia de Yuri talvez seja demais para os nossos padrões. Ele veio com uma proposta ousada, de testar os limites da instituição. "A obra de Yuri não se encerrou com a revelação de que Souzousareta é fictício: "Até fevereiro, faremos na sala do MACCE um acúmulo das matérias publicadas, o vídeo do debate no Museu".
Se a estratégia de Yuri não chega a ser propriamente uma novidade e pensemos no pronunciamento dos ataques de invasão da Terra por marcianos descrita em A Guerra dos Mundos e apropriadas por Orson Welles em discurso radiofônico, ou mais recentemente, no escritor JT Leroy, sua iniciativa despertou ataques de quem mais se sentiu ofendida por seu projeto artístico: a imprensa local ironicamente, quem viabilizou em última instância sua obra.
Em um primeiro momento, os jornais preferiram desqualificar o artista e o Centro Dragão do Mar. O Diário do Nordeste publicou texto na última quinta-feira cuja manchete classifica o projeto de "factóide", sugerindo que o Dragão do Mar comprometeu o "vínculo de credibilidade estabelecido junto aos veículos de comunicação e a sociedade cearense."
A reação na edição do mesmo dia do concorrente O Povo foi ainda mais agressiva: além de um texto informativo registrando aos leitores que a exposição era uma "pegadinha contemporânea", artigo assinado pelo jornalista Felipe Araújo classificava a obra de "molecagem" e não deixa de ser curioso que a molecagem, tão celebrada como marca identitária cearense, torna-se algo pejorativo quando põe em xeque o funcionamento da imprensa local. No texto, sobram ataques para a arte contemporânea no Ceará. "Com algumas caras exceções, uma arte pobre, recalcada e alienada, feita por moleques que confundem discurso com pichação" e corporativismo com os pecados da imprensa na cobertura do circuito artístico local.
Onde houve excesso de verborragia para desqualificar o artista e o Centro Dragão do Mar, faltou autocrítica incisiva para debater a ausência de uma imprensa responsável e especializada e questionar o uso do release por jornalistas, questão que vai muito além da "boa fé" dos profissionais de imprensa.
O diretor Ricardo Resende rebate as acusações de que o Dragão do Mar foi irresponsável em apoiar a iniciativa do artista. "Em nenhum momento a gente se eximiu da responsabilidade. O Yuri impôs, entre algumas regras, que a gente ficasse fora da divulgação. Quando a imprensa presssionou por informações, achamos que era hora de convocar o Yuri para falar. O Dragão não mentiu para imprensa, omitiu para viabilizar o projeto", declarou ao Overmundo. E sentencia: "Houve uma cegueira da imprensa. Os jornalistas estavam interessados porque era um japonês consagrado, artista que trabalha com arte eletrônica. Mas entendo que isso não seja um erro apenas da imprensa local, é da imprensa brasileira em geral."
A polêmica não arrefeceu. O mesmo jornal O Povo, que em edição de ontem publicou matéria de capa do caderno de cultura Vida&Arte dando voz ao artista e ao MACCE, acompanhada de um sensato artigo da jornalista Regina Ribeiro analisando criticamente o episódio, não hesitou em publicar editorial classificando a obra de Yuri de "Provocação Infeliz". O texto reconhece que a imprensa local "não sai ilesa" do episódio e diz que "em plena era da Internet não custava nada uma checagem em torno do nome divulgado", mas não poupa o artista de mais ataques, sugerindo que ele "extravasou suas frustrações e recalques na mídia". A afirmação revela justamente o que Yuri procurou mostrar: quem está precisando de um divã, efetivamente, é a imprensa cearense.
Trechos de e-mails enviados por Yuri Firmeza a Tiago Themudo:
"Olha aí, Tiago, e diz o que acha; A ocupação da sala será da seguinte forma: irei inventar um artista, biografia, currículo, obras; tudo ficção... Não sei como será a receptividade do público em relação ao Souzousareta, mas acredito que suscitará saudáveis desconfortos"